2012:
Conjuntura da Política Indigenista
Povos indígenas e o desenvolvimentismo do governo
Dilma Rousseff
Ao examinar a conjuntura
indigenista brasileira, em 2012, salta aos olhos a intensificação de campanhas
contra os direitos indígenas, protagonizadas especialmente por políticos,
empresários, latifundiários e organizações ruralistas. A Folha de S. Paulo tem
publicado, no caderno Mercado, uma coluna escrita por Kátia Regina de Abreu, senadora pelo PSD, do estado do
Tocantins. A vinculação da senadora com setores empresariais e pecuaristas fica
evidenciada na vigorosa campanha contra as demarcações de terras indígenas, da
qual ela se tornou porta-voz.
Algumas ideias defendidas na referida
coluna compõem uma plataforma claramente articulada em defesa do agronegócio.
Kátia Abreu afirma, por exemplo, que a situação de violência contra o povo
Guarani-Kaiowá será resolvida com ampliação da assistência e não com garantia
de terras; que não se trata de um conflito entre os indígenas e o agronegócio e
sim da tentativa de ONGs e da Funai de impor sua vontade; que o direito
indígena a terra deve estar subordinado aos interesses dos setores considerados
produtivos; que a ideia de que os índios vivem em condições abjetas, possuem
poucas terras e estão entregues à própria sorte é um equívoco. Tais afirmações
são sustentadas em rasos argumentos de base quantitativa, gerados em pesquisas
cujos procedimentos estão longe de resguardar parâmetros constituídos no sólido
terreno dos estudos antropológicos.
Outro exemplo das investidas contra os direitos
indígenas são os pronunciamentos ofensivos ou as ameaças claramente formuladas
contra as comunidades indígenas por parte de grandes proprietários de terras,
fazendeiros, empresários cujas alegadas propriedades estão sobrepostas à terras
tradicionais de alguns povos indígenas. É o caso, por exemplo, dos
pronunciamentos do ex-garimpeiro Claudino
Garbin, que possui uma empresa de terraplanagem, comprou terras no Paraguai e
uma propriedade de 33 hectares no entroncamento das BRs-101 e 280, em
Araquari/SC. Ele argumenta que o processo de expansão econômica não pode
sofrer interferências, pois é o maior valor a se resguardar. Diferente do que
pensa o empresário, os preceitos constitucionais são, isto sim, o que se deve
resguardar acima de qualquer interesse privado.
Em uma reportagem publicada no site Notícias do
Dia, em 24 de novembro de 2012, Claudino
Garbin afirma: “Se colocarem índios aqui, a bala vai comer solta. Que
não sejam loucos”[1].
Na mesma reportagem, o deputado federal Valdir Colatto (PMDB/SC) insurge-se contra os direitos
indígenas com a absurda afirmação de que “a Constituição determinou que as
terras deveriam ser demarcadas até cinco anos da promulgação, portanto as
terras que não foram demarcadas nesse período não são indígenas e não
necessitam de regulamentação”. De acordo com a tese do parlamentar, a
inoperância, a morosidade, a omissão do governo anularia os direitos
assegurados na Constituição. Se assim fosse, praticamente todos os direitos
sociais da população brasileira seriam nulos, considerando-se que os governos
raramente cumprem prazos determinados.
Os exemplos destacados mostram
como se concretiza, em discursos variados, publicados em diferentes fontes, uma
onda antiindígena com argumentos racistas, preconceituosos, que apelam para uma
classificação e hierarquização dos segmentos sociais para justificar que os
direitos de alguns (fazendeiros, ruralistas, grandes empresários) sejam respeitados,
enquanto os de outros (povos indígenas, quilombolas) sejam negligenciados.
Observam-se também no parlamento brasileiro
expressões desses diversos interesses nas terras e em seus potenciais, ao
considerar os projetos de lei que tentam impedir que se concretizem as
demarcações. Exemplo disso é a PEC 215/2000 que propõe que as demarcações de
terras sejam autorizadas pelo Congresso Nacional. Sem contar as dezenas de
outros projetos de lei apresentados por parlamentares para, de algum modo, restringir
os direitos indígenas.
Orçamento indigenista contingenciado e violações
dos direitos humanos
Os dados da execução do orçamento indigenista, ao
longo do último ano, também demonstram o descaso do governo Dilma para com os
povos indígenas. Chegamos ao final de 2012 com apenas 71,37% do orçamento
indigenista liquidado, conforme dados do programa Siga Brasil/Senado Federal.
Programas e ações fundamentais para a garantia da vida dos povos indígenas
tiveram uma pífia execução de seus recursos. É o caso do item Delimitação,
Demarcação e Regularização de Terras Indígenas, no qual foram utilizados
apenas 37,66% dos R$ 15.878.566,00 alocados para este fim. Tal aspecto, em si,
já é evidência da falta de vontade política para que se cumpram os dispositivos
constitucionais que asseguram as terras a estes povos. E se considerarmos que
apenas 34% das terras indígenas encontram-se registradas, vemos que, além de
ser insuficiente, o orçamento para 2012 sequer foi executado pelo governo, que
preferiu, mais uma vez, ceder às pressões de segmentos veementemente opostos
aos direitos indígenas.
A falta de uma atuação mais decisiva por parte do
governo no tocante às demarcações é demonstrada pelas 339 terras indígenas que
ainda encontram-se sem nenhuma providência por parte do poder público. Fica
mais clara ainda a negligência se olharmos apenas para o ano de 2012 quando
apenas sete terras indígenas foram homologadas pela presidente da República.
A morosidade e negligência na condução dos
processos de regularização das terras indígenas têm efeitos diretos sobre a
vida de centenas de pessoas. Não podemos deixar de observar também as
crescentes demandas judiciais contra procedimentos de demarcações de terras, em
curso ou até em fase de julgamento definitivo. Normalmente as decisões têm um
caráter liminar que suspendem os procedimentos demarcatórios até que o mérito
seja decidido pelas instâncias superiores, no caso Superior Tribunal de Justiça
ou Supremo Tribunal Federal. Exemplo disso é a decisão do TRF da 4ª Região, que
suspendeu os efeitos da Portaria Declaratória da terra indígena Mato Preto, no
estado do Rio Grande do Sul. Em função destas manobras jurídicas, os processos
se arrastam por décadas sem que haja uma solução para o litígio imposto.
Há, inclusive, uma correlação entre este aspecto e
o estado caótico em que se encontra a saúde dos povos indígenas. Seja porque,
somente quando têm a posse da terra é que as comunidades conseguem restabelecer
algumas condições culturais fundamentais, seja porque somente com a finalização
do processo de demarcação as pressões e violências praticadas por setores
interessados nas terras são atenuadas.
Não bastasse isso, observa-se no atual governo a
continuidade de uma modalidade de discriminação cruel, que é a recusa, por
parte Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), de atendimento de
indígenas que não vivem em áreas demarcadas ou regularizadas. Neste caso, os
indígenas são duplamente penalizados: primeiro, pela negligência e morosidade
na condução dos processos de demarcação e, segundo, pela desassistência
praticada para conter gastos com demandas sociais, fundada sob o argumento de
que os indígenas não necessitariam de atenção especial por viverem em
periferias urbanas, em áreas (ainda) não reconhecidas.
Outro item da execução orçamentária de 2012 a ser
considerado é o que se destina à Estruturação de Unidades de Saúde para
Atendimento à População Indígena, para o qual o governo estava autorizado a
gastar o montante R$ 26.650.000,00 e liquidou somente R$ 2.176.388,00 (o que
corresponde a tão somente 8,17% do previsto). Vale ressaltar que a situação da
saúde indígena (gerada em grande medida pela falta de assistência adequada) é
tão grave que os procuradores da República na 6ª Câmara de Revisão e
Coordenação Ministério Público Federal, ao participar de uma reunião com
integrantes de diferentes regiões do Brasil no mês de novembro deste ano,
constataram que os índios estão morrendo hoje não por epidemias, mas por
displicência do governo. Como resposta a essa grave situação, o Ministério
Público deflagrou uma campanha denominada “Dia D da Saúde Indígena”, na qual
várias ações judiciais foram propostas exigindo do Governo Federal a adoção de
medidas para tentar solucionar problemas como falta de medicamentos, ausência
de água potável, transporte adequado para pacientes que vivem nas comunidades
etc.
Em documento assinado por procuradores da 6ª
Câmara, denuncia-se que a mortalidade de crianças indígenas, por exemplo, está
acima da média nacional. A cada mil crianças indígenas nascidas vivas, 52,4
morrem na infância – índice duas vezes maior que o do restante da população do
país[2].
Enquanto o governo Dilma investe em grandes obras,
contingenciando os recursos orçamentários imprescindíveis para assegurar
dignidade e atendimento adequado à população indígena, agravam-se os problemas
de saúde e precarizam-se as já escassas estruturas existentes. Tanto é assim
que, nas 4.750 aldeias mapeadas pela SESAI, existem apenas 717 postos de saúde,
sendo que a maioria deles não dispõe de equipamentos e pessoal para seu efetivo
funcionamento.
De acordo com a vice-procuradora-geral da República
e coordenadora da Câmara das Populações Indígenas do MPF, Dra. Deborah Duprat,
nas aldeias indígenas “está faltando tudo: médico, remédio, transporte para
levar pacientes para os hospitais. O quadro é de extrema indigência”.
Retomando os números da execução orçamentária de 2012,
o dado mais impactante é, sem dúvida, o de Saneamento Básico em Aldeias
Indígenas para Prevenção e Controle de Agravos, com previsão de R$
67.986.192,00 dos quais foram aplicados apenas R$ 86.403,00 (o que corresponde
à vergonhosa cifra de 0,13%). Para ressaltar a displicência do Governo Federal
em relação a este quesito, basta retomar dados divulgados pelo Censo 2010 do
IBGE, que indicam que nas áreas indígenas registram-se os maiores déficits em
redes de esgoto sanitário, se comparadas com as demais residências em
diferentes regiões do país. Em apenas 2,2% das terras indígenas todos os
domicílios estão ligados à rede de esgoto, rede fluvial ou fossa séptica e
somente 16,3% são atendidos pela coleta de lixo.
Diante da grave situação vivida pelas comunidades e
povos em todo o país, a falta de execução do orçamento previsto para a questão
indígena é injustificável e se caracteriza como uma violação dos direitos
humanos.
Nesta mesma direção, intensifica-se a perseguição e
criminalização de lideranças indígenas que lutam pela terra, em especial nos
estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia, Pernambuco, Pará e Maranhão.
Somem-se a isso as dezenas de casos de agressão contra comunidades, resultando,
em 2012, no assassinato de pelo menos 55 pessoas.
A omissão do governo em relação ao intenso processo
de violências enfrentadas pelos Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul, e que se
pode caracterizar como genocídio, é talvez o elemento mais significativo deste
processo amplo de agressão aos direitos do ser humano. Os abusos contra este
povo são denunciados por organizações no Brasil e no exterior. Vale ressaltar,
ainda, que o estado de Mato Grosso do Sul continuou sendo, em 2012, recordista
em violências contra os povos indígenas, e ali as comunidades são obrigadas a
viver em beira de estradas – uma situação de “miséria cercada de riquezas por
todos os lados”. Realidade semelhante vive o povo Guarani no estado do Rio
Grande do Sul, submetidos em maioria a uma vida em acampamentos provisórios,
sem condições adequadas de saúde, de saneamento, de alimentação.
Registre-se aqui que das sete homologações de
terras indígenas assinadas pela presidente da República em 2012, nenhuma se
destinou a povos de Mato Grosso do Sul ou do Rio Grande do Sul.
Ao fazer esta breve retrospectiva da política
indigenista em 2012 constata-se a absoluta falta de disposição política, por
parte do governo Dilma, para que os programas e projetos que beneficiem as
comunidades indígenas sejam efetivamente executados. Tal fato estimula a cobiça
de segmentos econômicos e políticos que ambicionam a exploração das terras
indígenas e seus recursos ambientais, hídricos e minerais. O desenvolvimentismo
proposto pelo governo visa essencialmente fortalecer os grandes conglomerados
econômicos independentemente dos povos, culturas, pessoas e do meio ambiente.
Há grandes desafios a serem enfrentados pelos povos
e suas organizações: entre eles, o de apresentar as demandas, mobilizar-se em
torno delas para que efetivamente sejam acolhidas e transformadas em políticas
públicas, assegurando sua participação em todas as etapas; e o de pressionar o
poder público para que as terras sejam efetivamente demarcadas, protegidas,
estando na posse e usufruto assegurados aos povos e comunidades.
Sem que isso aconteça, não é possível vislumbrar o
efetivo combate às violências, ao descaso, à omissão e à dependência de
“políticas” paliativas e compensatórias. Sem isso, na hora de discutir
políticas públicas os povos indígenas serão tratados como "entraves"
num modelo de desenvolvimento sem garantias, que privilegia alguns setores e
penaliza muitos.
Porto Alegre (RS), 04 de janeiro de 2012.
Roberto Antonio Liebgott
Cimi Regional Sul – Equipe Porto Alegre
[1] Fonte: http://www.ndonline.com.br/joinville/noticias/39132-donos-de-terra-de-araquari-sao-alvo-de-desapropriacao.html
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